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Edição de 1856 |
A GRAMÁTICA DA CULTURA
Comentários do Doutor Sebastião
Moreira Duarte sobre a obra do Padre Rolim: Gramática Grega
A GRAMÁTICA DA CULTURA
Tempos houve - o têmpora, o mores!
- em que nos rincões perdidos do Nordeste brasileiro se estudava Latim e Grego,
como quem cumpria uma tarefa de identificação pessoal. Inacreditável, como
seja, para o que depois chegou a oficializar-se como leitura simbólica da
Região, este fato levou gerações, ainda nos anos verdes da média escola, ao
convívio diário com figuras e palavras que hoje talvez fossem até tomadas como
nomes feios: Cornélio Nepos e Fedro, Catulo, César e Cícero, Scilústio e Tito
Lívio, Ovídio e Virgílio, Horácio, de um lado, levavam, de outro, à camaradagem
com vultos como os de Píndaro, Anacreonte, Heródoto, Tucídides, De- móstenes,
Esquilo, Sófocles, etc., sem falar em encontros com o cínico Diógenes, com o
sisudo Plutarco, ou com esse barbudo Ulisses, o marinheiro da perene procura.
Havia nisso tudo, é verdade, certo
encanta- mento beato que não indagava o que o aluno iria fazer dos clássicos, mas
o que os clássicos iriam fazer do aluno. De todo modo, adquiria-se a consciência
de que, enraizado no chão como toda árvore viva, o homem brasileiro deveria
buscar a explicação de si lá onde se fundam as origens de sua cultura: na
herança greco-latina. E, afinal, quem fosse educador não poderia
desconhecer, in illo tempore, a verdade de que todos nós, como disse Euclides
da Cunha, somos mistura de celtas, tapuias e gregos. Estudar as humanidades
clássicas era já cumprir o mandamento oracular de conhecer-se a si mesmo.
Tal foi, sem dúvida, o
entendi- mento do Padre Inácio de Sousa Rolim (1800-1899), essa figura singular
de civilizador nor- destino, que, gra- ças à pesquisa te- naz de alguns es- tudiosos1
vem deixando o nimbo de lenda em que, até certo ponto, se envolvia, para
ga- nhar mais terreno em meio à rea- lidade histórica e revelar-se nos cla- ros
contornos do perfil que traçou de si mesmo, com obsessão, ao longo de sua
existência centenária: a do mestre escola, in- tei
ramente dedicado à causa do
ensino.
Do Padre Rolim cita-se a autoria
de um tratado de Filo- sofia, outro de Retórica, uma Gramática Portu- guesa, além
de uma Gramática Grega e um livro de Ciências Natu- rais. Falar do “Educador dos
Sertões” obriga a citarem-se esses dois opúsculos - os únicos a terem alcançado
a letra de imprensa - com entusiasmo in- versamente pro- porcional à pos- sibilidade
de manuseio de suas páginas, raríssimo e dificílimo como tem sido o acesso a
uma e outra. Da Gramática Grega, tem-se divulgado, curiosamente, a folha de
rosto - não mais que isso! - como só a passar certificado que, sim, ela existe.
Mas, como o nome do Autor não consta do frontispício da obra referida, já se
chegou a publicar dita folha sem que se tenha dado a conhecer quem teria
escrito o compêndio.
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Primeira página |
Eis, pois, o Extrato de Gramática
Grega, na sua inteireza, a renovar e enriquecer a Bibliografia brasileira, como
um passo adiante para tornar mais conhecida afigura do Padre Rolim. Dadas as
características de obra que interessa mais a especialistas, nenhuma forma mais adequada
de reapresentá-la do que a do fac-símile: fazê-la retornar “em sua primitiva
pureza”. Assim se tem à mão e se verifica, pela vista e pelo tato, o propósito
e as proporções deste trabalho do Mestre Sertanejo.
Note-se, nesse sentido, que não
foi gratuito gesto de hones¬tidade intelectual ter o Padre Rolim intitulado seu
pequeno volume de extrato e omitido o próprio nome da primeira página do livro.
É que ele quis deixar à mostra o nome do autor da obra de onde extraiu a
matéria que manipulou: Frei Custódio de Faria, religioso agostiniano, professor
do Colégio da Graça, em Coimbra, que, depois, acompanhou a comitiva de D. João
VI ao Brasil. Pode-se imaginar sem esforço a dificuldade de encontrar livros
didáticos, principalmente de uma língua antiga, mesmo num centro cultural como
o Recife, onde Inácio Rolim fora convidado a iniciar a cadeira de Grego. A
escolha de Frei Custódio de Faria significava a opção por um excelente texto,
mas que havia sido publicado em 1790 e, com toda certeza, não estaria ao alcance
dos pupilos do Liceu Pernambucano.
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Agradecimentos |
Ressalta, desde aí, uma vez mais,
como foi o traço do educador que veio a resumir e explicar as muitas feições
que assu¬miu a personalidade polimorfa de Inácio Rolim. Não fosse a premência
de atender à sua tarefa de professor, não haveria talvez razão para o
cometimento de que resultou o Extrato.
O que o termo extrato diminui do
empreendimento do Padre Mestre foi o trato que ele soube dar à obra de Frei
Custódio de Faria, em si mesma um texto que se pode dizer irretocável na
clareza da abordagem e na apresentação sucinta dos pontos básicos do Grego.
Basta lembrar que, mesmo incluindo o catálogo de abrevi¬aturas de códices
antigos transcrito pelo novo Mestre do Liceu Pernambucano, o trabalho de Faria
alcança só a 142 páginas. Rolim segue-lhe os passos com profunda atenção e
consegue reduzi-lo a quase a metade - ainda quando aí inclua uma pequena
antologia das fábulas de Esopo, não constantes do original de Faria - sem
perder aquilo que, em síntese e de primeira aproximação, haveria de convir
transmitisse aos seus estudantes. Aí se pode ver uma demonstração palpável dos
grandes atributos de expositor de que deveria ser dotado. Por exemplo, veja-se
este acréscimo a Frei Custódio de Faria, que ajuda ao iniciante penetrar as
maranhas da língua helênica: "Sendo essencial a todo verbo significar ação
ou paixão, não podem haver mais do que duas vozes: ativa e passiva: todavia, no
Grego chamam voz média aquela que, tendo em uns tempos forma passiva, em outros
forma ativa, tem de ordinário a significação ativa ou comum” (p. 26).
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Capa da edição do Prof. Sebastião |
Além disso, vale observar que
correm “dois textos” para¬lelos dentro das páginas do Extrato: um “genérico”,
no corpo principal da folha impressa, para o primeiro contato da parte do
aprendiz; o outro, “específico”, convidando, nas notas em corpo menor, a um
estudo mais atento dos detalhes, das variantes, das exceções, etc.
Claro está, no cotejo entre os
dois opúsculos - o original, impresso em Coimbra, e o seu derivado, saído em
Paris - que o segundo perde um tanto em qualidade em relação ao que lhe deu
origem. Para citar um caso, a tipografia, na gramática de Rolim, omite muitas
vezes acentos e espíritos, indispensáveis, sobretudo em escritos de intenção
didática.
Enfim, não cabe explicar por que
se publica um livrinho que é cópia de outro livrinho. Não será por aí que vamos
avaliar, como devido, a grandeza e a riqueza desse tesouro escondido da
Bibliografia sertaneja. A verdade é que, se era preciso resgatar e dar a
público um documento que fala muito do que foi a cultura nordestina e
brasileira, mais evidente se tornaria pedir desculpas a esse público por se
demorar quase século e meio para cumprir-se tal dever. Desculpas ao público e,
claro, ao Padre Rolim, que, monu¬mento cultural, não só mereceria outro
tratamento das gerações advindas, mas, apóstolo da educação e do ensino ele
mesmo, tanto fez para que se aprendesse o devido apreço aos valores que afirmam
a passagem e a permanência do homem sobre a terra.
Sebastião Moreira Duarte
Universidade de Illionois
junho de 1992
1 Vejam-se as biografias Padre Mestre Inácio Rolim, do Pe. Heliodoro Pires, e O Educador dos Sertões, de Deusdedit Leitão, vols. 1Q e 22 da coleção “Documentos Sertanejos”.